27 junho 2014

26

Aquele cheiro





Heloísa era uma menina muito romântica. Morreu de amores quando seus olhos de sonho cruzaram com os de Marcelo, meio escondidos, atrás dos óculos de grau. Conversa vai, conversa vem, Marcelo também se interessou por ela. Logo os dois começaram a sair e por fim iniciaram um namoro. Os dois se davam bem. Porém, no decorrer dos anos, Marcelo sempre muito prático, não conseguia lidar com o lado romântico da moça. Foi então que ele começou a querer passar mais tempo sozinho. Desligava o celular e demorava para responder os vários smss que Heloísa lhe mandava durante o dia. E quando ela lhe perguntava o motivo ele inventava uma desculpa. Trabalho, estresse, dor de cabeça e mais trabalho.

Às vezes, Helô passava algumas semanas na casa do namorado. Devido a isso, achou por bem, deixar alguns de seus pertences por lá. Peças de roupa e alguns objetos pessoais. Delicada, como era, decidiu que não seria nada demais, dar um toque feminino ao apartamento. Umas flores na janela. Cortinas mais claras. Algumas fotografias espalhadas pela casa. Marcelo, a princípio, não quis reclamar sobre aquelas mudanças. Apesar de sentir-se invadido. Outro fato que lhe aborrecia, era a chacota dos amigos. Eles insistiam em dizer que Marcelo agora, era um homem dominado e que logo logo estaria casado. 

Depois de passar uns dias na casa do Marcelo, Hêlo teve uma ideia. Sempre que ia embora sentia tantas saudades. Acreditava que o namorado compartilhasse esse sentimento. Por ela, os dois estariam morando juntos. No entanto, Marcelo reagia de forma bastante reticente sempre que o assunto era mencionado. Heloísa queria apenas que ele entendesse o quanto isso seria bom para os dois. Afinal, estavam juntos há três anos. Pensando nisso, resolveu colocar sua ideia em prática. Algo simples, mas carinhoso. Pensou naquele gesto como uma forma de lembrá-lo o quanto ela o amava. O quanto queria estar com ele para o resto da vida. Borrifou umas gotinhas de perfume no travesseiro dele e escreveu um bilhete.

"Gostaria tanto de poder dormir e acordar com você pro resto da minha vida. Sinto tanto a sua falta. Odeio ir embora. Deixei um pouco do meu cheiro no seu travesseiro. Gostaria que você pensasse com carinho sobre a ideia de morarmos juntos. Por favor! Te amo!!"

Marcelo saiu cedo aquela manhã, Hêlo ainda estava dormindo. Sabia o quanto ela ficava melosa sempre que ia embora e ele não estava à fim de cena.  Assim que deitou, sentiu o cheiro do perfume dela, Era bom, mas de alguma forma isso o irritou. Quando leu o bilhete, sentiu-se muito inquieto. Pensou no que os amigos diriam. Pensou no que seria da sua liberdade. Pensou nas roupas dela misturadas às suas. Escovas de dente juntas. A rotina de uma vida de casados. Isso era demais pra ele. Marcelo sentiu-se sufocado. Odiava quando ela tocava nesse assunto. Olhou fixamente para o bilhete por alguns segundos. Com raiva e frustração jogou-o na lixeira e tomou uma decisão. Aquilo acabava ali. Não queria continuar se enganando. Foi então que, dias depois. Alegando não ser merecedor daquele sentimento, Marcelo terminou tudo com Hêlo. Disse apenas que estava deixando-a livre para encontrar o cara certo. Alguém que a merecesse e que realmente pudesse fazê-la feliz

 Era uma vez, mais uma garota com o coração partido. 

Heloísa, juntou o resto de coragem que ainda tinha. Pegou tudo que era seu. Levou embora as flores, os cds, as fotos, as toalhas e as cortinas. Retirou suas poucas roupas do armário e todos seus objetos pessoais. A única coisa que restou como prova de sua presença ali, foram: seu cheiro no travesseiro e as lembranças de tudo o que tinham vivido. O tempo se encarregaria de apagar todo o resto. 

Marcelo sentiu como se tivesse acabado de tirar um peso dos ombros. Estava livre e não tinha mais que dar satisfações a ninguém. Poderia viver sua vida como bem entendesse. Não queria pensar em relacionamentos nem tão cedo. Para comemorar a reconquista da sua liberdade, passou a sair mais com os amigos. Madrugou em festas. Bebeu até passar da conta e saiu com várias garotas. Estava vivendo a vida perfeita. Mas ainda assim, vez ou outra, se sentia vazio e nunca estava completamente feliz. A verdade é que nenhuma das garotas com quem saía era tão esperta quanto Heloísa. Nenhuma delas tinha aquele sorriso de cantinho de boca. Nem o olhar tímido e sonhador. Nem as palavras de calma para os seus dias ruins. A verdade, é que com o passar dos dias, Marcelo começou a sentir falta de alguém que se importasse com ele. À noite, antes de dormir, ele agarrava-se ao travesseiro que ainda guardava o cheiro doce e suave daquela mulher. Cheiro que ia desaparecendo um pouquinho a cada dia.

            Não era a primeira vez que Heloísa saía de uma relação com o coração partido. Ainda assim, doía muito. Ela sofria na mesma medida em que amava, intensamente. Apesar de tudo, prosseguiu com a sua vida. Focou ainda mais no seu trabalho. Tirou mais tempo para cuidar de si e se distrair um pouco mais. Quem sabe um dia encontraria alguém que a aceitasse do jeito que era? Alguém que a pedisse pra ficar. Enquanto não encontrava essa pessoa, Helô sonhava. Quanto mais sonhava mais pensava que Marcelo poderia – se quisesse – ter sido o grande amor da sua vida. Nas horas mais difíceis começava a acreditar que era tarde demais. Que felicidade e amor eram utopias. Que talvez devesse encontrar apenas uma companhia agradável que estivesse na mesma situação que ela. Alguém somente para suavizar o peso da solidão.

            Certo domingo pela manhã, Heloísa estava sozinha em casa quando escutou a campainha. Tomou um susto, pois não estava esperando ninguém. Qual não foi sua surpresa ao dar de cara com Marcelo. Cabelos castanhos. Barba por fazer. Semblante cansado, triste. Olhos mergulhados em algo que ela não conseguiu entender. Sentiu raiva quando percebeu que seu coração estava batendo mais rápido.    


           Heloísa ainda estava de meias. Um pijama desbotado no qual ela havia derramado chocolate. Seus cabelos estavam presos num coque mal feito. Carregava um semblante de quem passara a noite acordada. Tinha um aspecto mal cuidado, mas nada disso conseguia esconder sua beleza. Muito pelo contrário. Aquela naturalidade a deixava muito mais bonita. Heloísa não disse nada. Ficou parada na porta esperando que Marcelo dissesse alguma coisa. Ficaram em silêncio por quase um minuto inteiro até que Hêlo finalmente perguntou:

            - Quer entrar?
            - Não, quer dizer, quero – respirou fundo e emendou – não quero incomodar você.      
            - Não vai.

Ela deu uns passos para trás deixando o caminho livre para Marcelo que entrou meio indeciso. Não esperava que pudesse ser tão corajosa e controlada. Tratá-lo bem estava sendo difícil, porque no fundo, ela queria gritar com ele.
           
- Senta ai.

Ela sentou no sofá, cruzou as pernas e olhou fixamente para Marcelo. Era claro que ela estava esperando que ele explicasse alguma coisa. Ele sentou e passou os olhos pela sala. Livros novos nas prateleiras e alguns abertos sobre o sofá.
           
- Estudando muito?
- Um pouco. Tem sido difícil me concentrar. Como tem passado? Trabalhando muito?
- Um pouco, as coisas estão meio difíceis.
- Pra mim também.

[Silêncio]

            - Helô, posso te perguntar uma coisa?
            - Pode.
            - Você já encontrou aquela pessoa?








            - Não, por quê?









Marcelo não sabia mais como continuar com aquela conversa. Sentia-se um perfeito idiota. Queria ir embora. Hêlo já não parecia sentir nada por ele. Olhava-o com outros olhos. Talvez ela até tivesse encontrado alguém e estivesse sem coragem para contar. Sentiu-se inoportuno, queria não ter tomado a decisão de ir vê-la. O que fazer?

            - Por nada.
            - Ahh.
            - Olha eu já vou indo, vim porque queria te ver, saber se você estava bem.
            - Já?
            - É...
            - Tudo bem, que bom que você veio.
            - Se cuida – disse quando já estava perto da porta.
            - Você também, se cuida.

          Heloísa tremia por dentro. Estava confusa. Por alguns segundos acreditou que Marcelo estava ali para lhe dizer algo importante. Mas ele estava estranho, arredio. Ela simplesmente não sabia o que fazer, então só podia esperar. Ela queria abraçá-lo, mas não conseguiu se mover. Ele queria fazer o mesmo, mas tinha medo da reação dela. Por fim fez um breve aceno e saiu fechando a porta atrás de si. Assim que viu Marcelo indo embora, Heloísa viu suas esperanças desabarem de vez, e, junto com elas, lágrimas escorreram pesadas pela sua face. Sentiu-se uma idiota por não ter dito tudo que estava sentindo. Mas Marcelo também não lhe dera nenhum sinal, apressado, estranho.

            Marcelo desceu as escadas sentindo um aperto no peito. Não queria ir embora dali. Queria ter dito tudo o que havia ensaiado, mas tinha medo que Heloísa o desprezasse. Ficou parado na entrada do prédio dela e um pensamento lhe ocorreu: o que ele tinha a perder afinal? Deu meia volta e subiu correndo as escadas. Heloísa olhou da janela e viu Marcelo parado em frente ao prédio. Será que ainda havia tempo de chamá-lo e dizer tudo o que estava sentindo desde que haviam se separado? Não havia motivo em sentir medo. Abriu a porta cruzou o corredor. Já ia descer as escadas quando deu de cara com Marcelo que sorriu largamente.

            - Oi. – ele disse.
            - Oi. – ela respondeu.
            - Queria te dizer uma coisa, não ia ficar em paz se não dissesse.
            - Eu também precisava te dizer uma coisa, mas fala você primeiro.
            - É que, sabe aquele cheiro que você deixou no meu travesseiro?
            - Sim.
            - É que ele acabou, eu quero ele de volta, quero você de volta.
            - Marcelo, sabe aquela pessoa sobre quem você perguntou hoje mais cedo?
            - O que é que tem?
            - É que eu já a encontrei.

Marcelo ficou sem reação. Mal podia acreditar que Heloísa havia encontrado outra pessoa. Quis ficar com raiva, mas no fundo ele sabia que a culpa de tê-la perdido era toda sua.

            - Entendo. Então, felicidades ao casal.

Heloísa deu aquele sorriso de canto de boca deixando Marcelo ainda mais desorientado.

            - Espera, ainda tenho que te dizer uma coisa, lembra?

Marcelo fez que sim com a cabeça e Hêlo prosseguiu:

            - Acontece que essa pessoa que eu encontrei é você. 



21 julho 2013

8

The way you look tonight

ESCRITO POR: RAQUEL GAFERAL



Eu sabia! Sabia que ia ser você... O tempo todo, desde a primeira vez que você me olhou sem graça por eu ser muito mais direta e atirada que você, por ter percebido de cara que eu sou escrava das minhas paixões... Hoje tenho a mais absoluta certeza de que era você! Olho ao meu redor e sinto com cada parte minha que se não fosse você, minha vida não seria nunca minha!

Errei tantas vezes, erros cruéis, impiedosos, talvez olhando pelo seu olhar, erros imperdoáveis e eu entendo seus motivos, mas gostaria tanto de te dizer só isso: você foi a melhor coisa que já aconteceu pra mim! Sem qualquer ironia, sem amargura, sem sarcasmo, com o peito levíssimo, não só do vinho que aprecio nesse momento, mas também de tempo que se passou, de coisas que desabrocharam, de uma alegria e fome de viver que por vezes parecem não caber em mim... Por tudo de ruim que eu te disse ou fiz um dia, gostaria que você soubesse que a maior caridade da sua vida foi ter entrado na minha. Gostaria de poder só deixar esse recado na sua porta, no seu email, em algum lugar em que você pudesse ver e se orgulhar de ter feito alguém tão feliz como eu estou. Seria perfeito, seria gratificante pra qualquer um saber que foi uma ponte pra maior alegria de todo o mundo, de todo um ser...

Porque me encontrei, eu me vi, agora sei o que é dar um sorriso verdadeiro, sei o que é apreciar um perfume, uma melodia, um sentimento, um amigo. Sei o que é passar uma madrugada inteira sorrindo de verdade e sozinha! Graças ao que vivemos, não tenho mais medo de mim, de estar ao meu lado. Muito pelo contrario, não abro mão de me ver, de conversar comigo, de saber o que penso, o que quero, o que sinto, o que me falta, o que me completa... Não abro mão do meu sorriso, dos meus mais leves pensamentos, das minhas reflexões, das coisas mais pequeninas da minha vida e agradeço por cada uma delas, e agradeço por você! Se eu pudesse te contar que o que descobri e continuo descobrindo é maravilhoso e me preenche de uma forma tão completa, tenho certeza de que sumiria qualquer amargura a meu respeito.

                Hoje eu sei o que é agradecer de coração, sei o que é ser firme, sei o que é ser forte, e sei das horas que tenho que chorar ou das horas que posso desabar e não me sinto só como antes, sinto que de alguma forma o medo se foi! E devo tudo isso a você e a mais ninguém!


Não penso mais em você com frequência, mas sempre que penso espero que esteja sendo tão iluminado quanto eu onde quer que esteja, tão feliz e completo como eu, aprendendo tanto quanto eu a cada dia que passa e enxergue inclusive o perdão que nunca pensou em dar. Desejo tudo de bom e sorrio, dai suspiro e agradeço a cada instante da minha vida, por ter trago você, por ter me tirado você tão brutalmente, tão "sem sentido", agradeço pela dor que senti quando vi você ir embora pra não voltar mais (pelo menos pra mim). Agradeço por ter caído tão fundo, por ter me deparado com meu pior lado nesse momento, pois foi graças a essa dor que encontrei e mereci o melhor de mim! Mesmo sem poder lhe dizer tudo isso. Desabafo sempre que penso em você, na esperança que um dia meus pensamentos ecoem até seu coração.


Era você, o cara que me faria despertar pra vida, para o amor! Amor por mim mesma!


Muito obrigada, eu te amei e assim aprendi a me amar. Nossos caminhos sempre serão opostos, mas eu espero que o seu seja tão florido e maravilhoso quanto o meu!                                                                  


Durma bem, vigia e ora sempre!

--

Autora: Raquel Gaferal


Uma paulistana solteira, em busca de loucas aventuras - ou talvez não em busca - mas que com certeza acaba encontrando...


04 julho 2013

26

Meu silêncio



Querido

Deixei o telefone fora do gancho, há riscos que não devemos correr – te perder, para mim é um desses tais riscos. Então me permita continuar com os olhos fechados fingindo que durmo, não quero deixar escapar que:

Ando cheia de você por toda parte, nos meus sonhos, nos meus rascunhos, nas fotografias que espalhei na parede da lembrança, na voz que não sai da cabeça – eu  sei que nunca te disse, mas acho teu timbre tão bonito; nos filmes que ando me recusando a assistir, em todas as coisas que estão longe demais do meu alcance, como estrelas brilhando alto no negror de uma noite de verão.  

Tenho um mar de sentimentos indizíveis que ondulam na praia do meu peito. – Como seria bom se tu atracaste teu barco por aqui; Juro que falaria se pudesse, mas emudeci, minha voz já não alcança as notas necessárias para cantar as melodias que se constroem por dentro. Então eu confesso-me no silêncio ao qual tu te recusas tão bruscamente, talvez você não perceba a tua fuga, e pra ser sincera, duvido muito que você esteja fugindo ou se enganando, essa atitude não condiz com você, mas como saber a verdade? Não posso simplesmente perguntar, como eu explicaria a desordem? Não posso te pedir pra entender algo que nem mesmo eu entendo. Os sentimentos que se revelam no silêncio não podem ser entendidos, apenas sentidos de volta. Como num beijo, as duas pessoas precisam querer, precisam entrar em uma espécie de sintonia, do contrário nada acontece.

Ahh! Moço de sorriso solto e olhar misterioso, eu reconheço que uma parte de mim adoraria jogar palavras a teus pés – apesar de não saber quais palavras jogaria; outra parte – esta a qual me agarro com unhas e dentes; deseja apenas selar meus lábios nos teus, passar a mão em teus cabelos e não precisar dizer nada. É tudo tão leve, como sonho de nuvem, é carinho demais, mas eu guardo tudo isso aqui dentro, é meio apertado e machuca um pouco, mas quê importa? Eu aguento.

Às vezes nas noites de insônia me ponho a pensar no que haveria de ser se você descobrisse o que as batidas descompassadas do meu peito revelam, me diz, o que seria se você pudesse ouvir os gritos que ecoam aqui dentro?

Eu sei, eu sei que você me tira o sono, que me desconcentra, preenche meus pensamentos por todos os lados. Teu rosto bem desenhado me persegue, as covinhas do teu sorriso me provocam, sorriso que aflige, os teus olhos de buraco negro me sugam pra dentro de você, olhar que me embaralha.

No fim das contas sei que tenho escolhas, mas já fiz a minha, eu sigo em silêncio enquanto meu coração sussurra de amores por você. Eu só posso seguir em frente sem te olhar nos olhos. Tenho que continuar indo embora quando você estiver para chegar, tenho que mudar meu rumo, caminhar por outras ruas, pegar outro trem.

Se fosse algo que pudesse ser explicado não tenho dúvidas de que você entenderia, você sempre entende mesmo quando eu penso que não. Mas e sentir, será que você sentiria? É difícil te fazer pensar com os sentimentos, você está sempre submerso num mar de razão, eu não tenho forças para nadar contra a sua correnteza.

Não reclame se eu não atender o telefone, não reclame nem tão pouco me julgue pela minha decisão de permanecer em silêncio, apenas aceite. Só mais uma coisa, tudo que a gente construiu até agora é igual a um castelo de areia eu simplesmente não posso permitir que a onda desse meu (a)mar venha e derrube tudo o que temos. Ambos sabemos que existem coisas que melhor não serem ditas, então, que assim seja...




Mayra Borges


09 maio 2013

28

Vida


A Vida tem cara de sapeca, é uma menina com vestido rodado, pintinhas nas bochechas, cabelinhos encaracolados, e olhinhos muito atentos. O que somos nós para a Vida? Marionetes, simples bonecos. A Vida gosta de brincar, odeia o previsível, o óbvio, então ela entrelaça nossos cordões, emenda uma história na outra e depois separa, termina... Embaralha uma marionete na outra, faz confusão.

Vida também faz pirraça e quando se cansa joga tudo pra lá, deixa a mercê da Sorte, que é outra menina, moreninha, dos olhos pretos feito jabuticabas maduras, mas não é da Sorte que falo, falo da Vida. Vida brinca demais com a gente, no começo trata com carinho os bonecos novos, mas depois vai escanteando e os brinquedos vão ficando surrados até que ela decide que já não servem mais e os dá pra uma prima, a prima é uma garota estranha, veste preto, tem os cabelos longos e olhos opacos. Vocês sabem de quem falo não é mesmo? Pois se não sabem eu vos digo, falo da Morte, criatura assustadoramente bela e para uns até atraente. Depois que as marionetes vão parar em suas mãos eu não consigo sequer imaginar o que acontece.

 A vida brinca com tudo, com os sonhos, destinos, amores, desamores e quase nunca dorme ou se descuida de seus brinquedos. A Vida é dada aos dramas, as agonias, mas também brinca de ser feliz e até que interpreta lindas histórias com suas marionetes. Vida é uma criança, e você sabe, tem coisa mais pura que os sonhos e vontades de uma criança? Ela é bonita, cheia de um tudo, curiosa que só ela. Ela é uma pessoa cheia de opostos, de imprevistos e mudanças de humor. 

Nós como marionetes não podemos exigir nada dela, seguimos seus caminhos sem saber até onde ela nos levará e nem adianta querer saber, você nunca vai conseguir. A menina bonita e faceira gosta de brincar com o Imprevisto; menino alto, cabelos onduladinhos e olhos profundos e agitados. Melhores amigos brincam de mãos dadas, e quanto a nós simples marionetes? Nada podemos fazer a não ser seguir, é uma resposta estúpida e brilhante a nossa única opção é viver.

25 abril 2013

26

Vela



- Sabe, acho que viver é como andar no escuro._disse ele olhando a rua pelo vidro da porta da frente do Café.
- Por quê?_a moça ruiva deslizou o dedo na borda da xícara de café, olhando a espuma branca que se aglomerava nas extremidades.
- Quando se anda no escuro a gente nunca sabe o que vai encontrar, corremos o risco de tropeçar em qualquer coisa. A vida é meio isso, imprevistos, tropeços._o homem com barba por fazer e olhos quase negros olhou para a moça que parecia tecer maiores filosofias acerca do café que estava prestes a tomar.
- Faz sentindo, mas quando a gente conhece a casa andar no escuro não fica tão perigoso._a moça sorriu e então olhou para ele, ela tinha olhos amendoados e expressivos.
- É, mas mesmo que a gente conheça a casa, podemos nos surpreender com algo que esteja supostamente fora do lugar, não é tão simples._ele pegou um biscoito e mordiscou.
- Não?_perguntou ela depois do primeiro gole reconfortante do café quente.
- Não._olhou a rua mais uma vez, o dia estava cinza, chovia devagar.
- Então seguindo sua teoria e aplicando em outros sentidos. Amar é andar no escuro e é ainda mais perigoso, porque viver é andar no próprio escuro, mas amar é andar no escuro de outra pessoa._a moça agora gesticulava displicentemente e olhava o moço com ar de riso.
- É poético, mas eu penso diferente._ele a encarou, mas desviou o olhar rapidamente.
- O que pensa?
- O amor é a vela que nos ajuda andar no escuro._comeu mais um biscoito.
- Tropeçamos em um monte de coisas até encontrar a luz, é isso que quer dizer?
- É.
- Que merda._riram juntos.
- A vida também pode ser uma merda, às vezes._olhou mais uma vez para a rua.
- Uma vela? Não poderia ser uma farol de milha?
           - Quem ama é cego, não pode ver horizontes distantes, pode ver no máximo um palmo a frente, essa é a graça._encarou-a rapidamente e logo abaixou a cabeça.  
            - Parece que você tem conhecimento de causa. Já encontrou sua vela?
Nesse momento o rapaz quase engasgou, não esperava a pergunta, aquela altura já deveria ter se acostumado com a mania que a moça tinha para perguntas diretas e difíceis.
           - Garçom, a conta, por favor._tentou mudar de assunto e agradeceu mentalmente por ela pensar que as suas bochechas vermelhas eram decorrentes da tosse e não da vergonha que ele havia experimentado.  
            - Não vai responder?_insistiu.
            - Não sei se devo.
            - Sabe?
            - O quê?
          - O medo é o vento que apaga a vela e te faz permanecer imóvel no escuro por mais tempo que você merece._disse a frase encarando o ar, como se estivesse pensando em voz alta, mas ela queria que ele entendesse, só não queria que soasse banal.
            - Acabou de inventar isso, garota!_tentou desviar o rumo da conversa.
        - Não, o medo paralisa mesmo. “Só não pode o medo te paralisar”_cantarolou "Vertical".
            - Quer mesmo que eu responda?
            - Quero.
            - Encontrei._ele olhou para ela e deixou que seus olhares se encontrassem.  
            - E onde está sua vela?_ela sorria, pois quase sabia a resposta.
            - Bem aqui na minha frente...


Mayra Borges  | Vertical - Engenheiros do Hawaii




11 abril 2013

19

Procura-se por:



Gente simples, que saiba rir de si mesmo, que goste de tomar banho de chuva. Procura-se por gente que goste de olhar a lua e de contar estrelas. Procura-se por gente que não tem vergonha de ser o que é. Procura-se por gente que desliga o celular no cinema, na sala de aula, na biblioteca. Procura-se por gente que goste de colecionar e ouvir CDs. Procura-se por gente que compartilhe experiências. Procura-se por gente que ande descalço. Procura-se gente que gosta de contar histórias, conversar, dar risada, brincar. Procura-se gente que dê valor a vida. Procura-se gente que enxerga os detalhes, as flores, os pássaros, a sombra do avião. Procura-se por gente que gosta de gente, gente que sente e que tem a alma colorida. Procura-se alguém que goste de suco de fruta tirada do pé, que suba em árvores, que ande descalço pelo chão de terra. Procura-se gente que goste de se divertir, andar de patins, brincar de amarelinha, pular corda. Procura-se alguém que goste de adivinhar desenho em nuvem, de ver o pôr do sol, de sentir a chuva bater no rosto. Procura-se alguém que goste do vento e do cheiro da água do mar. Procura-se por gente humilde, que respeita, que entende. Procura-se gente que goste da sessão da tarde, pipoca com guaraná e andar só de meias pela casa. Procura-se gente que vê além do que se vê. Gente alegre, valente e disposta. Procura-se por gente que gosta de andar de bicicleta, cheiro de terra molhada, sorvete de abacaxi. Procura-se gente com borboletas no estômago, que não tenha medo de amar, que seja verdadeiro, que olhe nos olhos, que acelere o coração, dê frio da barriga e beije a testa com carinho. Procura-se gente que não leva a vida muito a sério. Procura-se gente que desliga a TV, lê para crianças e tem medo de escuro. Procura-se gente que não tenha vergonha de dançar engraçado na frente dos outros. Procura-se gente de verdade que não tem vergonha de ser o que é, gente que deixa o orgulho de lado, gente que pede perdão e também sabe perdoar. Procura-se gente que gosta de abraço de urso, de jardins, que se arrepie e se emocione. Procura-se por gente que gosta da natureza, que abraça árvores e se encanta com o voo das borboletas. Procura-se gente que canta mesmo desafinado. Procura-se por gente que empresta o casaco no frio, que sabe ser gentil, que é educado, que respeita vagas preferenciais, que dá lugar no ônibus para as grávidas, velhinhos ou a quem precisar. Procura-se por gente que recolha a sujeira do bichinho da rua, que jogue lixo no lixo. Procura-se por quem não tem receio do simples e do natural. Procura-se por gente que é de verdade em meio aos superficiais. Procura-se pelos raros, preciosos e verdadeiros. Procura-se pelos loucos, poucos e autênticos seres humanos.

Mayra Borges

29 março 2013

10

Deixo em paz as Margaridas



    Os dias correm sobre os trilhos de horas intermináveis e sou obrigada a atravessá-los nesta lentidão muda e angustiante. Perdi-me em meio ao tempo e seu significado relativo. Já não consigo entender se os ponteiros deste relógio estão indo ou voltando, se estou na direção do futuro ou se estou parada num presente que corre ao contrário neste calendário pela metade.

     Minha vida anda solta, como um ponto sem nó, foi refreada no exato momento em que a linha quebrou e a costura saiu torta, não tem como remendar este pedaço, então alguém pode me explicar o porquê de eu ainda tentar fazê-lo?

    E se insisto em não querer ver o que está errado vou flutuando nestas divagações tolas, propósitos em rota de colisão e despropósitos bem planejados. Meu vestido desbotado é feito de medo, incerteza, meu reflexo mostra apenas a ilusão do que eu penso ser a face mais real de mim, mas em algum lugar mais ao fundo desta confusão algo me diz que posso ser mais firme e um pouco maior, custo a acreditar, porque alguém me distrai.
                 
    E se em algum momento fosse possível despir-me do que não sou, se houvesse então a possibilidade, mesmo que ínfima, de deixar de ser esta versão malfeita de mim mesma? Um lugar para onde ir e voltar outra, menos metade, mais leve, mais verdade, mais liberdade. Talvez haja, quem sabe?

     Não quero mais sentir esse coração que bate lento e a respiração inalterada, não quero mais essa imensa brandura, este tédio anunciado. Alguém pode me dizer para onde foi o calor, a força, o arrebatamento? E os abraços, para onde foram? Viraram casa onde não caibo mais. 

    Quero abrir meus olhos e o meu coração mesmo que sangre, pois já não suporto mais este silêncio, este sono sem sonhos, esta calmaria forjada. Estas coisas dão-me a impressão de que estou oca, pra onde foi minh’alma? E este amor, quase sem dono? E eu que vou deixando de me pertencer? Não aguento mais este acúmulo de sentimentos que me enfraquecem, debilitam, afrouxam-me as forças. Não quero mais estar fria, áspera e só.

     O que me pertence agora não passa de alguns suspiros tolos e esperanças fragmentadas. Cheguei a pensar que era dona das palavras, mas a bem da verdade estas me foram tiradas a força e atiradas indiscriminadamente por ai, foram mastigadas e cuspidas, pisoteadas e jogadas a beira de tantos outros caminhos que não o meu, foram semeadas em ventos gélidos e as poucas que restaram perderam-se em sentido, fui roubada. De resto sobra ainda uma dúvida que incomoda como uma dor contínua e persistente que em primeiro momento mostra-se invariável e crônica. Quero então poder renunciar a tudo isso.

      Aqui então me cabe repousar o pensamento nas Margaridas. Lembro do que me foi dito uma vez: “Elas te darão a resposta”. Era mentira, engano, tolice. Minhas dúvidas dariam as flores um fim indigno de sua existência, gastaria suas pétalas delicadas com uma indagação que de tão estúpida não merece sequer ser atribuída aos gestos de um romantismo exacerbado. Bem – me – quer – mal – me – quer?  Por que matar as flores inocentes em busca de respostas que elas em sua natureza singular não podem dar? Deixo em paz as margaridas e grito ao pé do teu ouvido: Bem me quer ou mal me quer?

      Sim, eu estou falando de amor ou da ausência dele. Em que momento ele partiu? Quando deixou de ser real?

      Resolvo então que é hora de despir-me deste vestido sujo de medo, ignorar este relógio indeciso e o seu tic-tac no meu peito, hora de por os pés no chão, de abrir os olhos e o coração, deixar que sangre e que cicatrize. Encaro você que tem as respostas, sim, você que me disse amor. O que nos tornamos afinal? Consegue me explicar o que há dentro de você, ou já está vazio demais pra ser possível distinguir? Aqui ao meu lado tens uma presença opaca, fria, te vejo sempre insensível a dor que se alastra pelo meu corpo até a ponta dos dedos e que verte impiedosa pelos meus olhos cansados. Por que você já não se importa mais? Por que ainda insiste em ficar se não queres mais? Por que alimentas este animal extinto que outrora se chamava amor? Por quê?

     Desce desse muro, me olha nos olhos e para de escolher palavras bonitas, elas não conseguem mais compensar a tua inabilidade em agir, em sentir. Escolher palavras é fácil, vê-las dissolverem-se em não concretismos é que não é, forjar sentimentos é fácil, perceber que tudo não passa de uma falsidade mal arquitetada é que não é. Estar no teu lugar é fácil, estar no meu é que não é. Se me permites dizer, cansei desse teu qualquer coisa, é tão mesquinho. Cansei de te esperar chegar e ver que só viestes ainda menos que a metade. Cansei de perder o sono por causa desta tua indecisão que também é minha. Já faz tanto tempo que já não somos muito.

     Eu não vou mais ficar aqui parada, esperando que o dia termine, esperando você resolver se quer ou não me amar um pouco mais. Cansei de me reconstruir e ver você pisoteando todo o meu esforço com o seu descaso medíocre. Porque você me alimenta, me acaricia, me abriga entre estes teus braços frígidos e diz que volta, mas tudo o que você faz é ir embora e cada vez mais demora a voltar. Tudo o que você faz é me deixar aqui pra depois rir dessa minha solidão, rir por me ver a mercê de qualquer coisa, carente de você, relegada ao amargo de um acaso qualquer.

   Se você prefere insistir nesta brincadeira, sou eu quem decide por nós, então. Fique se quiser, porque eu vou embora. Desato todos os nossos nós. Reconheço meus limites e aqui é a nossa última estação, eu tenho outro trem a tomar. Entendo assim que o teu silêncio é a minha resposta e o que eu tenho a dizer? Cansei. Não ouviu? Então eu repito: CANSEI! Se você prefere o banho maria, sinto muito, mas eu prefiro o fogo alto, melhor queimar inteira do que nem chegar a ferver. Não quero mais metades, nem mentiras, nem silêncios, incertezas, desalento, acasos e descasos; não quero mais você.


Mayra Borges

07 fevereiro 2013

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E hoje de bom grado abraço a solidão


Garota, o nosso laço virou nó. Hoje eu quero sair só. Andar sem rumo pelas ruas. Pode ficar com meu último beijo, claro, se ainda quiser. Resolvi me soltar dos teus abraços. Pode deixar, já sei me virar. Vou preencher meus vazios ficando de prosa com a solidão. E já que eu vou sem data pra voltar, por que você não sai pra dançar? Não quer ir? Então fica, porque hoje quem vai embora sou eu.

Chega das tuas marcas de batom na minha alma. Chega dessas grades nas janelas dos meus olhos. É hora de entender a liberdade. Não me culpe, pois nunca neguei essa minha fobia de plurais. Despeço-me de ti, das horas contadas e das datas marcadas em velhos calendários. Despeço-me de todas as regaras, ditaduras, estereótipos e manuais de boas maneiras.

Hoje contarei causos e estrelas. Ei de admirar as belas moças à beira mar. Tomar umas e outras. Vou dançar sozinho, sem ritmo nem compasso. Quero mesmo sair da trilha bem marcada desse teu caminho. Hoje vou deitar-me com a liberdade. Vou fazer serenata pra lua, tomar banho de mar. Vou achar bonito cantar Caetano, mas não vou reclamar por estar sozinho.

Entenda como quiser, mas o fato é que não preciso mais dessa sua prisão. Não me apetecem mais esse tal nó na garganta nem as desconfianças dos teus beijos frios. É hora de dar adeus a esse meu desgaste, cansaço, desilusão. Quero mesmo é abraçar a vida que transborda em abundância pelas ruas, esquinas e praças. Quero enterrar meus pés na areia. Banhar-me nas ondas nuas, mornas, noturnas. Afogar-me na luz da lua.

Vou redescobrir meu nome, meu rosto, meu endereço. Apaziguar minhas dores e minhas desilusões. Hoje espero me encontrar, te perder e nunca mais achar.  Nem adianta apagar a luz, pois de tanto viver de os olhos vendados aprendi a andar no escuro. Também não adianta querer me acertar a queima roupa, pois me blindei pra você.

Tchau, já deu minha hora. Vou ficar na rua até a lua virar sol. Nem procure meus rastros, pois vou correndo, contando os passos pra bem longe de ti. Nem me olhe com esses olhos castanhos. Nem derrame suas lágrimas, já me convenci. Vou mergulhar no mar de mim. Vou-me embora, pra esquina, pra Pasárgada, pro fim do mundo. Não pense mal de mim, mas é que aqui eu não fico nem mais um segundo.

            De herança te deixo aquele último beijo e não se iluda, pois é de despedida. Porque a partir de hoje eu abraço de bom grado a solidão.

Mayra Borges


23 abril 2011

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Sobre as flores



Não sei escrever sobre flores, elas por si só são indescritíveis, tão irretocáveis em sua natureza singular, mas prometi que faria isso. Hoje pela manhã estava observando os botões de rosa vermelha que minha mãe sempre coloca sobre a mesa, tão doces, bonitos e perfumados. 

Nunca ganhei uma flor, não precisa ser um buquê decorado, apenas uma já me deixaria feliz, desde que fosse dada com sincero carinho. Eu disse que não sabia escrever sobre flores, são seres perfeitos e minhas palavras imprecisas não são o bastante para descrevê-las. E como não sei falar das flores escrevo sobre a falta que me faz ganhar uma. 

         A simplicidade da perfeição em forma de presente, um gesto singelo e magnífico de amizade e amor quando alguém olha para uma flor bonita e ao entregar diz "Ao ver esta flor pensei em você" ter minha memória associada a da flor, ai está a magia do presente. Há certos casos em que os presentes mais caros não podem substituir as coisas simples da natureza, que para alguns não tem valor, mas que para mim são de valor inestimável, já que carinho e brandura não podem ser comprados, apenas conquistados com sinceridade.  

Mayra Borges

09 agosto 2010

0

Sobre o tempo



Sinto-me tão vazia, tão só, sinto falta de algo que eu nem sei muito bem o que é. Talvez esteja sentindo falta de algo que nunca possuí. Talvez seja o domingo, as tardes de domingo são sempre tão monótonas e ocas.

            Sempre passo os domingos no sítio, ou na casa da minha madrinha ou na casa da minha avó. Não é assim tão ruim, a casa está sempre cheia de gente e não raro acabo por me divertir bastante.         Vivo cercada de familiares, tias, tios, primas e primos... Mas confesso que também me sinto estranha entre todas estas pessoas, como se de algum modo não pertencesse àquele lugar.

            Hoje durante a tarde fiquei sentada no banco da varanda, minhas primas, afilhada também estavam comigo. Meu avô resolveu nos mostrar fotos antigas, bilhetes que escrevíamos quando pequenos. É incrível ficar ali constatando pelo amarelo das fotografias e cartões que o tempo passou, como sempre, que as pessoas também passaram com o tempo e mudaram com ele, inevitavelmente.

            Na volta para casa fui tomada de um sentimento inexplicável de ausência. Estava frio e chovia, fixei meu olhar nas gotas de chuva que deslizavam pelo vidro da janela do carro, que avançava devagar pela estradinha de terra esburacada. Parei para observar a tarde cinza e fria e de repente eu já não era mera observadora, eu era a própria tarde úmida e chuvosa, fria, eu era o anoitecer daquela tarde. Ao meu lado estavam minhas duas primas, a mais velha embalava o sono da mais nova... e de repente entendi porque estava sendo a própria tarde triste. O sentimento era de ausência, solidão. Olhei para o horizonte embaçado e senti-me tão sozinha diante de um mundo tão assustadoramente grande.


            Voltei às fotografias amareladas, liguei os fatos. Isso aqui é sobre o tempo, não é? Tudo o que escrevo é sobre o tempo que vai passando sorrateiro, o tempo que não perdoa nem beneficia a ninguém, o tempo e sua justa injustiça. E eu aqui? Por que não há ninguém que me dê a mão? Por que não há ninguém que me conforte? Talvez seja porque eu tenha me fechado dentro do meu próprio mundo, fechei-me e já não sei mais como sair deste lugar abafado e claustrofóbico... E meus olhos então imitaram a chuva que além de lá fora, também chovia sobre mim, em mim, dentro de mim.